sábado, 9 de junho de 2012

Sofremos

Temos um ritual aos sábados: sofrer.
Sofremos juntos, ou virtualmente juntos. Ouvimos músicas tristes e reclamamos da injustiça sentimental da vida. Patético, eu sei, mas nos unimos bastante dessa forma. Li em algum lugar que já não me recordo mais que o sofrimento une mais que a felicidade. Uma dor em comum é muito mais expressiva que várias alegrias juntas. Não que não compartilhemos alegrias, às vezes acontece, porém reclamar faz muito mais o nosso tipo.
Aí eu me peguei pensando em até que ponto nos tornamos coniventes com a nossa situação. A cada dia que passa estamos mais velhos e infelizes e parecemos aceitar isso tão completamente que esquecemos de lutar contra, de tentar recuperar a juventude perdida ou, para tentar evitar o exagero, esquecida. E enquanto me vejo sentada no sofá vendo a noite passar, ouvindo canções tristes e escrevendo sobre isso, percebi que talvez a gente goste de dizer que está sofrendo.
A razão é sempre obscura, não sofremos abertamente, sofremos assim, por inércia. Sofremos pelo dia que está escuro, pela poesia do Drummond, por um ótimo show. Sofremos por não estarmos onde queríamos, por estarmos lá sem saber o que fazer, por saber o que fazer e não querer fazer. Sofremos com toda e qualquer circunstância que a vida apresenta, por que no fim das contas apesar de termos quase tudo o que falta é demais para ser ignorado e ignorar seria sucumbir à felicidade e no fundo, não sabemos ser felizes.
Às vezes penso que se autodeclarar uma pessoa feliz só pode ser uma dessas duas coisas: loucura ou aceitação. Porque ninguém é feliz, você pode estar vez de vez em quando, como condição, não estado permanente. Pode ser louco o bastante para não se importar com os outros dias ou aceita-los de bom grado como penitência para que as coisas boas aconteçam. Muitas vezes desejei esse estado de loucura consciente e limpa, mas hoje vejo que não é o melhor. Eu não saberia lidar com ela como lido com o sofrimento. Lidamos. Um dia passaremos por isso tudo de uma vez só. Atingiremos a loucura ou a aceitação. E então eu não sei o que será de nós, mas acho que seremos alguma coisa, enfim. 
Alguma coisa para o mundo, talvez. Para nós, seremos sempre isso, sofredores convictos.


"Ah, meu Deus, eu que pensarei deste dia nesse dia
E o que serei, de que forma; o que me será o passado que é hoje só presente?...
O ar está mais desagasalhado, mais frio, mais triste
E há uma grande dúvida de chumbo no meu coração..."


(Álvaro de Campos)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Para onde vamos?

Há algum tempo comecei a escrever num caderno azul, no qual faço à mão com uma certa frequência aquilo que costumava digitar. Talvez por isso eu não tenha mais o impulso de atualizar esse blog. Sentar em frente ao computador e escrever se tornou um ato artificial para mim. O papel é mais real, palpável e pode ser manchado a qualquer momento pela minha caneta e meus sentimentos.
Minha falta de assiduidade no blog vem também do fato de que ultimamente sempre que escrevo um texto acabo achando muito pessoal e não tenho vontade de publicá-lo. Isso me faz pensar nessa necessidade patológica que se tem hoje de expor tudo quanto for possível, publicar as próprias vidas e esperar que os outros leiam, gostem e comentem, o que tem me assustado muito ultimamente.
Fico me perguntando por que diabos uma página na internet precisa conter tantas fotos, referências, gostos, conversas abertas ao público. Fico me perguntando para que ter centenas de amigos se eles não significam nada. Eu queria saber por que estamos tão condicionados a uma tela, tão estupidamente encantados em exibir tudo o que somos, se no fim das contas, no mundo real, não somos nada daquilo. Não temos novecentos amigos, não tentamos dizer o tempo todo o quanto gostamos de algo nem elogiamos comportamentos, palavras e atitudes sempre que as vemos ou ouvimos. Nós não temos sempre algo para dizer.
Mas o dia todo, a semana toda, a qualquer minuto, há gente dizendo algo que sem a menor importância, algo que está sendo comentado e reproduzido por centenas, talvez milhares de pessoas que não tem nada a dizer. E então todos abraçam causas rasas, todos carregam imagens e discursos como se isso os fizesse mais nobres, mais cidadãos. Todos repetem uma causa por que as causas agora são massificadas pelas redes. Ao que parece, ninguém está tentando se aprofundar em nada, ninguém quer saber as origens ou as consequências de nada. Eles só querem algo para dizer, qualquer coisa, afinal, é preciso sempre estar dizendo alguma coisa.
Se é para dizer algo sobre você, não sopre ao vento, diga a quem importa. Se é para lutar por uma causa, levante da cadeira, desligue o computador e vá entendê-la, procure descobrir de que maneira você pode fazer alguma coisa. Se quer expressar seus sentimentos, faça-o para si mesmo ou para alguém envolvido neles. Acredite, você não precisa que todos saibam tudo sobre você, você não precisa estar o tempo todo tentando provar o quão interessante, engraçado ou popular você é.
Eu tenho medo de uma geração inteira que acha que precisa de tudo isso. E às vezes eu acho que o uso da internet para maioria das pessoas hoje é tão estúpido quanto usar Dom Casmurro como calço de mesa.

"Ah, onde estou onde passo, ou onde não estou nem passo,
A banalidade devorante das caras de toda a gente!
Ah, a angústia insuportável de gente!
O cansaço inconvertível de ver e ouvir! "
(Álvaro de Campos)

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Faltas

Sorriram para mim, mas era mentira. Eu, que vivo a ser confundida e a confundir-me, que vivo a cair nas ruas e em tentações. Era mentira. A leveza do sorriso não carregava toda a incerteza desse dia cinza e ninguém vai encaixá-lo, tão sincero, na minha blindada face ou vai oferecer em vão algo tão precioso a um destino tão errante.
Mas era um sorriso, de qualquer forma. Um sorriso de mentira, é fato, mas um sorriso alheio que só me fez refletir sobre o que pensam as pessoas que andam sozinhas nas ruas, como eu, mas sorriem para estranhos naturalmente, sem mensurar a seriedade de uma caminhada solitária ou as exigências de uma tarde cinza.
Fazia frio e uma garoa fina de inverno se acumulava nos meus cílios e o vazio inexorável, aquele que sempre está e sempre esteve comigo, mas em certas ocasiões explode e grita no meu peito, esse vazio companheiro e demônio tomou conta de mim e transbordou. Dentro de mim só havia uma pergunta, uma pergunta essencial que resumia toda a minha vida, todas as minhas lágrimas, todas as minhas palavras. A pergunta central, que não tem respostas nem expressão verbal, é sobre a leveza. Às vezes eu queria ter sentimentos pássaros como tantos outros e deixar pesar só aquilo que vale a dor. Mas as minhas dores não valem nem as razões nem as palavras. Não valem um sorriso. Por isso, era mentira.

“Eu...
Tive um passado? Sem dúvida...
Tenho um presente? Sem dúvida...
Terei um futuro? Sem dúvida...
A vida que pare de aqui a pouco...
Mas eu, eu...
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu...”
Álvaro de Campos.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Sempre

O grito retorna num eco insuportável.
Todos estão parados, o mundo está correndo. As perguntas que eu gostaria de responder jamais serão feitas, que sentido faz seguir respondendo? Estou respondendo o quê? A quem?
E de repente tudo está na minha mente. Perguntas, ecos, pessoas, o mundo girando, girando, girando. Corro sem objetivo, mas estou aqui, correndo. Isso é bom ou ruim? E a gramática, os números, o que sei ou deixo de saber, tudo isso, é bom o ruim?
O certo e o errado se escondem em toda essa confusão, em mim e nos outros. Olho para o céu, sei agora que choverá. E a vontade é de correr pelas ruas lavando o que tiver em mim, ou apenas ocupando o vazio. E se o certo e o errado forem meus e só meus eu os poderei contestar abertamente e sozinha, como venho feito com tudo, enquanto todos se protegem em seus telhados. Talvez a contestação seja a melhor alternativa para quem não sabe bem o que ouviu ou o que quer dizer e para ser ou ter alguma coisa renega tudo o que lhe é mostrado, o que acaba bem aquém de toda a implicação social que todos atribuem aos contestadores natos, como se eles e só eles tivessem o poder de defender os direitos de todos. Não sei, mas acho que sinto falta de concordar absolutamente com alguma coisa.

"E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —
E basta de comédias na minh'alma! "
(Opiário, Álvaro de Campos)

sábado, 2 de julho de 2011

Partida

Não, não será mais do seu jeito. Eu não vou mais permitir que me dilacerem dessa maneira e é bom que você saiba que não há argumentos contra o fim. Desisti de você e esse é um fato aberto, do qual eu não me envergonho ou tento fugir. A liberdade me espera do outro lado da porta e eu não encontro as chaves, tire-as dos bolsos, entenda, acabou por aqui. Acabou tudo o que você me ofereceu e acabaram suas justificativas para a ausência. Acabou minha paciência e meus medos, eu disse, é o fim. Agora eu quero partir, eu preciso que você permita minha ida, por favor, entregue as chaves.
Engraçado é que o meu maior orgulho nunca foi notado. Eu cansei de esperar o dia especial, o momento da virada, mas vamos, me deixe partir. Eu não quero perder nenhum pedaço meu nesse monólogo, não quero que você me queira, não agora. Agora eu quero outros, novos exemplares de tudo o que eu tenho visto. Eu quero a liberdade que licenciaram apenas à você. Quero ser minha e de mais ninguém, porque esse seu discurso de posse me faz ferver a cabeça. Não me venha tentar justificar tudo o que passou. Passou, mas fica algo, sempre fica. E quando mais tempo perdermos nisso maior será meu asco pelo passado.
Não preciso lembrar-me de você. As coisas boas passam assim, como se um vento forte as arrancasse à força de nós, deixando poeira nos olhos e embaraçando os cabelos . O desconforto me corrompe e eu preciso correr logo daqui, antes que tudo vire pó. Eu não posso me queimar, não posso me destruir agora, eu não vou conseguir me levantar.
Estou indo, não me estenda as mãos, quero apenas as chaves. Isso, passe as chaves. Obrigada. Não olhe assim, não, não diga nada. Eu estou partindo.

"Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote
Da casa do campo da minha velha infância...
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?"
(Álvaro de Campos)

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Olhos que Faltam

Você olhava para mim como se soubesse de onde vim, quem sou e o que busco.
Você olhava para mim e eu sentia vergonha e euforia.
Você olhava para mim fixamente e eu, sem saber, fazia o mesmo. Não havia mundo algum ao nosso redor. Eram meus olhos e os seus, uns perseguindo aos outros, indo fundo para tentar decifrar o futuro que cabia dentro deles, quando na realidade só cabiam olhos dentro de olhos. Os meus e os seus.
Não sobravam sentidos nem ações. Eu tinha algo para dizer, mas o quê? E seus lábios não se moviam, suas mãos estavam mortas. Não havia nada para se fazer enquanto o encanto não quebrasse. Você olhava para mim e eu andava em sua direção.
Meus passos doíam. Meu coração não batia, vibrava. E seus olhos seguiam presos aos meus, seus lábios me davam um sorriso de presente. Eu olhava para você e sorria. O peito latejava e a dor era de cura. Você olhava para mim e tudo era curado.
Você tocou em minhas mãos e o mundo voltou a rodar. Você me abraçou e tudo voltou a fazer sentido. Você tremia, eu chorava. Tudo acontecia do modo e no tempo certo. Você olhava para mim e seu olhar dizia poesias belas. Eu chorava, sem ver por trás das lágrimas. Tudo ficava embaçado e meu amor me corroía por dentro.
Eu me deixava tragar pelos seus olhos, me permitia o luxo de perder a razão. Eu ia inconsciente, buscava com sede a força que me puxava. Você olhava para mim e me roubava a alma. Eu não me queixava e isso me corrompia.
Então você fechou os olhos e eu abri os meus. Era dia. A vida continuava.
Você não mais olhava para mim, e eu não mais chorava.
Estava Integralmente em mim, como antes.


"Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,
E é com minhas ideias que tremo, com a minha consciência de mim,
Com a substância essencial do meu ser abstracto
Que sufoco de incompreensível,
Que me esmago de ultratranscendente,
E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,
Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir!"
(Álvaro de Campos)

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Never More

A arma estava ali, repousando sobre sua perna esquerda. As mãos, por sua vez, estavam como mortas, cobrindo os olhos. Você estava só, Atirador. Era a hora de estourar de vez os seus miolos, botar em prática o plano sinistro que vinha planejando há semanas. E por que você não conseguia? O que estava errado agora?
Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. A frase de Drummond não lhe abandonava. E você tentava apaga-la, convencer a cabeça de que não havia flor alguma. Estava tudo cinza, tudo perdido. Mas mesmo assim as mãos não se moviam, e as pernas tremiam como quando você andou de bicicleta pela primeira vez. O que estava acontecendo? Você repetia em sua mente que o mais corajoso é o que foge primeiro. Quando não se acredita mais em algo, não se deve mais fazer parte daquilo, não é? Você já não acreditava mais no mundo e mesmo assim não conseguia se livrar dele.
Foi a menina. A criança que cruzara seu caminho. Por que ela sorriu daquele jeito? Ela entrou em seus olhos daquela maneira que só as crianças são capazes. Ela sorriu e disse-lhe “não”. “Não o que?” você perguntou perturbado, mas não houve resposta. Ela se foi, levando sua coragem. E agora você acreditava na maldita flor do asfalto.
Um simples não, tão privado de sentido, tão vago, levou a morte de você. “Fraco”, você repetia. Mas a ambiguidade torna as coisas mais severas. Você podia fazer daquele não o que quisesse, e antes que você parasse para analisa-lo, ele surgiu assim, como uma flor do asfalto em sua mente.
A garota disse não. É tudo o que você tem dito, não é? Negar o mundo é o primeiro passo para a liberdade, você dizia. Esse mundo que te prende e te sufoca lhe nega a voz. E você quer negar sem que nada lhe seja negado, quer a revolução sem nexo nem início por meio do não. Mas a menina negou-lhe a morte. No fundo, você acreditava em anjos e para você ela era um deles.
Então, por que morrer? Havia esperança, afinal. Havia sinais. Havia mais do que o lixo que se apresentava todos os dias em sua porta. Mas o que fazer com eles, Atirador? E a dúvida te sufocava tanto quanto a certeza. E você pegou a arma por um segundo e não soube o que fazer dela. Ninguém podia te ver, você escolhera o lugar ideal. O vento lhe trazia notícias do mundo, mas você não conseguia compreender. Desde pequeno você não aceitava a humilhação de não entender. Você estava cansado e arma já pesava em seus dedos.
Foi então que seu braço, numa ação involuntária levou o revolver até a sua boca. O gosto metálico lhe esfriou a espinha. E agora estava certo. A flor seria você, mas ao avesso. Você seria a lição, a poesia. O verso mudou. Não se tratava mais da flor, mas do corvo. É só isto, e nada mais. E então você atirou. A verdade lhe escapou pela boca, mas ninguém pode ouvir. Nem você, um verdadeiro Atirador.

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,


Libertar-se-á... nunca mais!


O Corvo, Edgar Allan Poe
(tradução de Fernando Pessoa)