sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Never More

A arma estava ali, repousando sobre sua perna esquerda. As mãos, por sua vez, estavam como mortas, cobrindo os olhos. Você estava só, Atirador. Era a hora de estourar de vez os seus miolos, botar em prática o plano sinistro que vinha planejando há semanas. E por que você não conseguia? O que estava errado agora?
Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. A frase de Drummond não lhe abandonava. E você tentava apaga-la, convencer a cabeça de que não havia flor alguma. Estava tudo cinza, tudo perdido. Mas mesmo assim as mãos não se moviam, e as pernas tremiam como quando você andou de bicicleta pela primeira vez. O que estava acontecendo? Você repetia em sua mente que o mais corajoso é o que foge primeiro. Quando não se acredita mais em algo, não se deve mais fazer parte daquilo, não é? Você já não acreditava mais no mundo e mesmo assim não conseguia se livrar dele.
Foi a menina. A criança que cruzara seu caminho. Por que ela sorriu daquele jeito? Ela entrou em seus olhos daquela maneira que só as crianças são capazes. Ela sorriu e disse-lhe “não”. “Não o que?” você perguntou perturbado, mas não houve resposta. Ela se foi, levando sua coragem. E agora você acreditava na maldita flor do asfalto.
Um simples não, tão privado de sentido, tão vago, levou a morte de você. “Fraco”, você repetia. Mas a ambiguidade torna as coisas mais severas. Você podia fazer daquele não o que quisesse, e antes que você parasse para analisa-lo, ele surgiu assim, como uma flor do asfalto em sua mente.
A garota disse não. É tudo o que você tem dito, não é? Negar o mundo é o primeiro passo para a liberdade, você dizia. Esse mundo que te prende e te sufoca lhe nega a voz. E você quer negar sem que nada lhe seja negado, quer a revolução sem nexo nem início por meio do não. Mas a menina negou-lhe a morte. No fundo, você acreditava em anjos e para você ela era um deles.
Então, por que morrer? Havia esperança, afinal. Havia sinais. Havia mais do que o lixo que se apresentava todos os dias em sua porta. Mas o que fazer com eles, Atirador? E a dúvida te sufocava tanto quanto a certeza. E você pegou a arma por um segundo e não soube o que fazer dela. Ninguém podia te ver, você escolhera o lugar ideal. O vento lhe trazia notícias do mundo, mas você não conseguia compreender. Desde pequeno você não aceitava a humilhação de não entender. Você estava cansado e arma já pesava em seus dedos.
Foi então que seu braço, numa ação involuntária levou o revolver até a sua boca. O gosto metálico lhe esfriou a espinha. E agora estava certo. A flor seria você, mas ao avesso. Você seria a lição, a poesia. O verso mudou. Não se tratava mais da flor, mas do corvo. É só isto, e nada mais. E então você atirou. A verdade lhe escapou pela boca, mas ninguém pode ouvir. Nem você, um verdadeiro Atirador.

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,


Libertar-se-á... nunca mais!


O Corvo, Edgar Allan Poe
(tradução de Fernando Pessoa)

sábado, 1 de janeiro de 2011

Com "E" no final.

Meu nome é Caroline. Por favor, não confunda. Caroline, com “e” no final. Eu não sou muito, não sou pouco. Eu não sou nada, por enquanto ou para sempre, eu não sei. Eu não sei. Eu nunca sei.
Eu não costumo crescer em mim, não tenho nenhum hábito narcisista. Não sou, porém doce, sociável ou delicada. Eu sou assim, e deve haver outros jeitos que eu deseje e talvez alcance, mas não ainda. Eu reclamo constantemente das coisas que deixo de ter, e fui ficando pequena para o mundo e enorme, insuportavelmente enorme dentro de mim.
Mas hoje eu senti algo além de mim e do mundo, além das minhas dores medíocres e minha anestesia estúpida. As insuficientes palavras do meu vocabulário banalizarão essa sensação, a levarão ao lugar comum, mas cresci e explodi em mim, e de repente tudo é um propósito claro e eu sou a única culpada.
Não há nada menor do que eu.
Não há nada maior também.
Agora eu sou quem sou sem angústias, crescida, forte. Além das dores físicas que senti, além do vazio sentimental que ainda sinto. Eu sou humana, planejada, milimetricamente, desenvolvida para abraçar e compreender o mundo. Posso dominá-lo, e engoli-lo. Não há nada nem ninguém além de mim capaz de parar meu progresso. Se sou ativa? Se tenho feito algo? Não, não tenho. Tenho ridiculamente desperdiçado minha vida lamentando inutilmente. Mas hoje, pelo menos hoje, acredito em qualquer coisa.
Erguida, impassível, não há nada nem ninguém que vá me parar. Eu estou no topo e na base, eu posso querer e querendo eu posso conquistar. Sejamos francos: todos somos enormes. É nossa culpa parecermos pequenos. Eu não preciso de uma razão para me odiar. Nunca mais serei meu carrasco. Meu mundo é outro, eu sou outra. Epifania : nada mudou, mas tudo está diferente.
Meus olhos estão enormes. Tudo vejo, tudo absorvo. O mundo é meu e eu sou do mundo. Tudo me pertence, pertenço a tudo. Sou gigante. E serei de qualquer jeito.
Sou suficiente para mim. Ainda serei mais do que jamais esperei.
Repito calmamente: não pararei. Estou pronta para o mundo. Jamais pararei.

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.

Põe quanto és
No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis