segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Chore, senhor.

Tanta dor num só olhar, o que você carrega neles, senhor?
Olhos tristes. Claros e tristes. Quando você sorri, eles ainda são tristes. Carregam uma dor profunda, bem ao fundo, que qualquer um que repare pode enxergar. Não posso saber por que eles são tristes, também não posso afirmar se de fato o são ou se meus olhos que os vêem assim, mas quando os encaro, sinto uma dor no peito, um aperto, que seja, não sei, mas dói. A dor dos seus olhos dói em mim.
Tristes sim, tristes.
Lindos olhos tristes você tem. E me intriga não poder definir o que é de fato esta tristeza que eles carregam. Pode ser o peso de odiar a quem mais ama, ou o vazio de ser amado por desconhecidos. Pode ser a falta de emoções, ou o excesso delas. Tanto sofrimento cabe nos teus olhos que eu não sei definir quais são os mais graves. Talvez ninguém te entenda, talvez queiram tanto entender-te que acabam sendo invasivos e só aumentam tua dor. Talvez você só queira que ninguém se importe com as suas dores e por isso as tente esconder dentro dos olhos.
Nunca te disseram que os olhos são a porta para a alma? Sua porta está entreaberta, senhor. Eu tento ver o que se esconde atrás dela, mas tudo o que entendo é que há sofrimento, isso há. Mas quem sou eu para decifrar as dores alheias? Eu que nem sei quais são as minhas, eu que nem sei abrir as portas da minha alma para mim. Você tenta esconder, mas não consegue. Você tenta parecer duro e rude, tenta ser indiferente, tenta mostrar ao mundo que não se importa. E talvez consiga mostrar ao mundo todo, mas não a mim.
Eu não te conheço, senhor. Não faço idéia do que se passa no seu coração, nem hei de fazer algum dia. Alguns acham que sabem e que podem sair dizendo por aí o que existe dentro de você. Tolos, não sabem de nada. O pouco que sei serve para dizer: desista.
Desista, senhor, desista do que não convém fazer. Desista de tentar agradar aos outros e a si mesmo. Desista de ser perfeito, mesmo que às vezes consiga. Desista, meu senhor, desista. Desista que logo te deixam em paz, e por mais que a sua desistência cause dor em outros, continue mesmo assim. Mas não finja mais. Eu posso ver que você sofre, não tente esconder. Não tente mais fingir indiferença no que diz, não coloque sentimento apenas no que escreve. Abra esta porta ou tranque-a de vez, não a deixe assim, entreaberta.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Álvaro de Campos.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Um Susto, um Segundo.

Às vezes, ao tocar no fogo, você não se queima.
E talvez se queime, mas a dor não aparece. É rápido e não é fatal, apenas acontece e não tem conseqüências. Você sente o calor e busca pela dor que deveria chegar, mas ela simplesmente não vem. Foi só um susto, um segundo.
Há quem se sinta assim em relação ao mundo. Um calor, tão repentino que passa rápido, sem que haja tempo para descobrir de onde surgiu e o que causará. Não chega a ser um prazer nem uma dor. Um susto, apenas um susto e de repente tudo volta ao normal. O sofrimento antecipado de uma dor que nunca vai começar. Um grito que surge e nunca sai da garganta.
Não, não há alívio, mas sim vontade de gritar. E eu quero o grito.
Talvez eu queira sentir a dor. Porque talvez, a dor seja o sentido de tudo, a magia das coisas. Talvez seja a única coisa que importa de fato. Sem dor não há cura, e dessa forma aquela constipação da vida talvez nunca acabe.
Não entendo tantas coisas, e de tanto querer entendê-las, acabo com toda a verdade que elas carregavam, tornando-as vazias para mim antes de senti-las de fato, minhas queimaduras sem dor.
Não, nunca me permitam findar a vida numa grande chama indolor. É preciso sentir para compreender a complexidade do não saber das coisas. Preciso de dores e certamente dos analgésicos. Mas é preciso que eu sinta alguma coisa para que possa gritar em plenos pulmões com toda a vida guardada sem propósito. Urrar de dor, sentir na pele o mundo de fora e depois da cura, sorrir com o alívio das coisas que aconteceram. Sorrir com o prazer de nada ter se perdido. Sorrir.
Não, não quero sofrer.
Este nada não é sobre sofrimento.
É sobre sentir. Apenas sentir.

Quem sente somos nós,

Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.

Nada! Não sei...

Um nada que dói ...

Álvaro de Campos.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Não, não Quero Ouvir

Em algum momento, na parte que cabe a mim, o mundo silenciará.
Nenhum ruído, nenhum arfar, nenhum sinal de proximidade. Todos os sons existentes serão os que eu queira escutar. Dentro de um novo plano, as coisas estarão do jeito que eu nem sempre quis, mas que hoje quero.
Eu hoje quero o silêncio e algumas lágrimas, quero indiferença. Eu quero o calor do sol na pele e a total ausência humana ao meu redor. Quero ser só eu e os meus pensamentos, que contam por muita gente. Quero o prazer do estar só combinado à perturbação de falar comigo mesma. Quero a esperança de que o mundo há de calar-se sempre que eu precisar dele calado e há de gargalhar quando eu precisar de uma risada. Quero a luz atravessando as pálpebras e o cheiro de nada em lugar algum. Quero estar onde cri que estaria nos meus sonhos solitários, nos meus dias de pouca gente. Não quero ouvir vozes, não quero ouvir respirações nem sentir presenças.
No dia em que o mundo silenciar eu quero apenas ser eu e quero o mundo pálido e escondido atrás de qualquer lugar. Quero saber onde ele está, mas não quero que ele saiba onde estou. Não quero que ninguém se importe comigo, mas quero continuar me importando com quem me convém. Não quero falar, não quero sorrir, quero perder o sentido para o resto. Quero ouvir a voz doce do silêncio e sentir que de fato estou só como nunca estive antes.
Quero o mundo quieto, calado.
Quero um lugar escuro onde eu já não veja por onde ando, e quero tropeçar antes de chegar ao destino que não sei qual é. Mas quero ter a certeza de que há um destino.
Não quero me calar, quero falar sempre que tiver vontade, e dizer o que tiver vontade. Quero ter muitas vontades. E não quero conquistar todas. De imediato, só as vontades mais estúpidas como a de sair correndo com os olhos fechados, e ter a certeza de que nada estará no meu caminho. Eu não quero ser. Hoje, no silêncio em que eu gostaria de estar, eu quero apenas estar. Estar. Estar e sentir que estou onde devia, e se não estiver onde devia, que eu sinta a adrenalina de fazer o oposto do que me pedem.
Não quero que perguntem por mim.
Quero que me esqueçam, e hão de esquecer!
E quero acordar deste pesadelo que é desejar tantas coisas estúpidas ao mesmo tempo. Quero não sofrer com o não querer. Quero ser por fora tudo o que tento não ser por dentro e sentir tudo o que tenho procurado evitar. Quero não me importar com as vozes e as respirações, e esquecer que existe um mundo ruidoso ao meu redor. Quero que a terra não pare nunca de girar e o tempo nunca pare de passar. Quero a felicidade de ser o que quero e a tristeza do erro casual.
E quero num apelo silencioso, no fim do dia, uma lua cheia, cheia de coisas para me mostrar. Quero nuvens e uma chuva forte, torrencial, que lave a minha alma e rompa enfim meu silêncio querido.

Esta velha angústia,

Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Álvaro de Campos.