domingo, 29 de agosto de 2010

Querido Álvaro de Campos,

O que sentias na pele parecia doer. Sentias tanto por ti quanto pelo que vias pelo mundo ao seu redor, este mundo que não sabia quem eras ou o que tinhas no peito hipotético. Amavas tanto que jamais soubeste ao certo a essência do amor.
Eu não sei de todas as coisas que o grande gênio que te criou fez de ti. Na realidade, pouco sei além da Engenharia falida, mas lendo teus versos sinto-me tão íntima das tuas dores e amores que enxergo em ti a minha parte mais viva e irreal.
Às vezes nos exacerbamos em nossas dores. Dizemos coisas sem sentido para tentar justificar a insatisfação de ser quem somos, fazer o que fazemos ou sentir a falta que faz aquilo que desconhecemos.
Mas a verdade, meu caro, é que nós faltamos com o mundo (com o perdão do plural, mas preciso de seu apoio). A cada silêncio, a cada ausência de ímpeto, cada palavra grande para dores pequenas, nos afastamos da realidade. Acabamos fracos no pior significado da fraqueza, fracos que não correm, mas escondem-se por trás de si mesmos.
Ser Caeiro numa noite e Campos pela manhã era mais fácil ou difícil que ser o mesmo todos os dias? Não sei se invejo ou sinto compaixão por seu criador. Sigo venerando-o sem tentar entendê-lo, pois se ele que quis e pôde dividir-se de tantas e tão perfeitas formas talvez realmente quisesse que não o compreendêssemos. Ele fez algo grandioso do que sentia. Você, poeta querido, é uma bela obra. E nós, mortais? O que devemos fazer?
O que fazer, caríssimo, quando o presente se comporta como um deserto imenso, infinito, por onde vagamos em busca de uma gota d'água que estimule e facilite essa corrida pelo horizonte? Certas vezes o ímpeto de parar, deitar e secar é mais forte que a sede. Vago sedenta, apenas vago...
Talvez por isso estive pensando em como foi teu fim. De todas as coisas do mundo real que teus olhos imaginários viram e teu coração irreal sentiu, o fim foi a mais triste ou o melhor alívio? Secaste na janela, defronte à Tabacaria?
Essa é uma dúvida que gosto de ter comigo, como todas as outras sobre este teu mundo.
A resposta para tudo isso, meu caro, há de estar em alguma das páginas de sua existência. Sigo acompanhando-nas com fervor.
Com todo o meu amor,
C.

"Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar."

Poema de Canção sobre a Esperança, Álvaro de Campos.

sábado, 14 de agosto de 2010

Poema Vazio

Tudo o que era deixa de ser.
E tudo o que não era continua não sendo.
E nada mudou.

Olho para os lados e nada me satisfaz.
Tudo me falta sem que nada esteja falatando.

E tudo é dor sem que haja dor.
E tudo é nada havendo nada.

Tudo que é meu não pertence a mim,
Enquanto eu mesma não pertenço a nada nem a ninguém.
O vazio inexorável se estende pelo Universo.

Anestesia... Anestesia


Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta fica, fica, fica...
Passagem das Horas, Álvaro de Campos

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Prisão

Há uma janela imensa e dentro dela cabe o mundo.
Por ela eu vejo tudo o que acontece e posso escolher o que convém e o que não convém a mim. As coisas gritam, cintilam, e eu arrasto minha cadeira para a beira da janela e procuro não perder um sopro que esse mundo dá. Eu vejo, mas não toco.
Nada ali me pertence, não há um plural entre nós. Há eles e eu e todo o resto que se amontoa nas entrelinhas do meu espaço visível. Eu assisto a cada evolução deles, enquanto permaneço parada, chorando, sorrindo. Por eles, não por mim. Eu vivo a vida deles, sinto as emoções deles e sorrio quando a felicidade deles me comove.
Não pareço existir. Assim como a energia do produtor se perde a cada nível trófico da cadeia, as sensações chegam a mim enfraquecidas, quase imperceptíveis. Esforço-me em torná-las palpáveis, para que me vejam e venham me contar melhor o que se passa. Aceno, eles não veem. Grito, eles não ouvem. Ao que parece, esta janela me prende a um submundo, um universo paralelo onde eu sou a única habitante. Há de fato vida além daqui ou eu mesma sou mais uma ilusão?
Certa vez eu acenei, e alguém sorriu para mim. Não sei se foi exatamente para mim ou se apenas veio em minha direção, mas para manter aceso o fogo da vida obrigo-me a ter a certeza de que era meu o aceno. Pergunto-me todas as noites, quando fecho a janela: se é verdade, e se aquela pessoa pode me ver, por que ninguém mais pode? Por que é que eu sou a única a perceber onde estou e quem sou? Por que estou presa a esta janela empoeirada, sem perspectivas ou sonhos plausíveis? E acima de tudo, por que diabos não consigo simplesmente pular a janela e encontrá-los?
Por trás disso tudo, de mim, da janela, do mundo, das pessoas, há transição livre entre verdade e ilusões? Sendo assim, sou eu a única que jaz em um leito esculpido na mais sórdida realidade, pálida, quieta, sufocada dentre os sonhos alheios? Olhem para mim, olhem! Respondam. Sejam francos, me esclareçam, me fortaleçam. Por que não podem me ver?
Repito para mim todos os dias que este mundo que sente e sofre e vive não pode me ver. Seria cruel demais se me visse mas ignorasse. Eu não suportaria a idéia da indiferença. São tantas as vezes na vida que cremos no que queremos! Com toda eloqüência que almejo ter, esbravejo, enlouqueço, peço aos céus e a terra que me movam daqui. Quando me canso, só peço ao mundo que me traga mais perfumes e que assim eu sinta pela pele o que não conseguirei produzir a partir das flores. Elas estão todas do outro lado da janela.
Com as forças que me restam, puxo a cadeira e me sento outra vez. Olho o mundo cego e escondo a pior coisa que me vem a cabeça num lugar onde eu não possa vê-la. Eu sei que ela está ali, mas não ouso tocá-la, não me leva a nada. Sofro. Sorrio. Assisto a tudo mais uma vez.


Vi sempre o mundo independentemente de mim.

Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,

Mas isso era outro mundo.

Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.

Acima de tudo o mundo externo!

Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim.

Álvaro de Campos